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9 de mar. de 2009

Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Amei esse trecho do livro "Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra"...é lindamente poético e profundo.

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As primeiras cartas

O importante não é a casa onde moramos.

Mas onde, em nós, a casa mora.

Avô Mariano


Escapo-me dali, me apressando entre os atalhos. Quando reentro em casa não encontro vivalma. Todos foram para o caminho da areia assistir à desgraça, consolando Ultímio. De soslaio, parece-me ouvir um ruído. Entro na sala fúnebre e nada vejo, senão o aquietado corpo do velho Mariano. Lá está o desfinado, entre flores e velas. Subo para o quarto. De novo, sobre a cabeceira, uma outra carta. A tremência em minhas mãos não me ajuda a ler:

Estas cartas, Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, se deixe em bastante sossego e escute. Você não veio a esta Ilha para comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano. Você cruzou essas águas por motivo de um nascimento.

Para colocar o nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o morto. Veio salvar a vida, a nossa vida. Todos aqui estão morrendo não por doença, mas por desmérito do viver.

É por isso que visitará estas cartas e encontrará não a folha escrita mas um vazio que você mesmo irá preencher, com suas caligrafias. Como se diz aqui: feridas da boca se curam com a própria saliva. Esse é o serviço que vamos cumprir aqui, você e eu, de um e outro lado das palavras. Eu dou as vozes, você dá a escritura. Para salvarmos Luar-do-Chão, o lugar onde ainda vamos nascendo. E salvarmos nossa família, que é o lugar onde somos eternos.

Comece em seu pai, Fulano Malta. Você nunca lhe ensinou modos de ele ser pai. Entre no seu coração, entenda aquela rezinguice dele, amoleça os medos dele. Ponha um novo entendimento em seu velho pai. Às vezes, seu pai lhe tem raiva? Pois lhe digo: aquilo não é raiva, é medo. Lhe explico: você despontou-se, saiu da Ilha, atravessou a fronteira do mundo. Os lugares são bons e ai de quem não tenha o seu, congênito e natural. Mas os lugares nos aprisionam, são raízes que amarram a vontade da asa.

A Ilha de Luar-do-Chão é uma prisão. A pior prisão, sem muros, sem grades. Só o medo do que há lá fora nos prende ao chão. E você saltou essa fronteira. Se afastou não em distância, mas se alonjou da nossa existência. Antes, seu pai estava bem consigo mesmo, aceitava o tamanho que você lhe dava. Desde a sua partida ele se tornou num estranho, alheio e distante. Seu velhote passou a destratá-lo? Pois ele se defende de si mesmo. Você, Mariano, lhe lembra que ele ficou, deste lado do rio, amansado, sem brilho de viver nem lustro de sonhar.

Mia Couto. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 64-5.

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Resenha da Editora

Um jovem estudante universitário regressa à sua ilha-natal para participar no funeral de seu avô Mariano. Enquanto aguarda pela cerimónia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra. A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral, este novo romance de Mia Couto traduz, de uma forma a um tempo irónica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural. Uma vez mais, a escrita de Mia Couto leva-nos para uma zona de fronteira entre diferentes racionalidades...

Sobre Mia Couto:

Mia Couto (Beira, Moçambique, 1955) é um dos escritores moçambicanos mais conhecidos no estrangeiro. António Emílio Leite Couto ganhou o nome Mia do irmãozinho que não conseguia dizer "Emílio".

Filho de portugueses, Couto era militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e lutou pela independência do país contra Portugal (1964-74). Foi um dos compositores do hino nacional de sua pátria e trabalhou para o governo durante a guerra civil (1976-92). Embora um pouco desapontado com os rumos tomados pela Frelimo, que abandonou o marxismo em 1990, ele ainda se diz simpático ao agora partido político, que continua no poder em Moçambique. Couto é um escritor acostumado aos prêmios. Em 2008, tornou-se o primeiro africano a vencer o União Latina das Literaturas Românticas, entregue em Roma, e seu primeiro romance, Terra sonâmbula, foi eleito um dos 12 melhores livros de toda a África no século XX. Fã dos escritores brasileiros, ele é, assim como Guimarães Rosa, um inventor de palavras – que, quando vêm à cabeça, anota em papéis e guarda no bolso para não esquecer.

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